sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O povo que tocou a Lua e depois adormeceu.

Estava-se num tempo agora esquecido, que fica sempre do antesequente só quanto fizerem subsequentemente lembrar os avós e as perguntas espertas.
Recorde-se, então, a fome, o frio e a escuridão que povoavam o rigor dos invernos de Nwangombo, as noites em que todos se despediam e recolhiam ao cassado abrigo de palha e lama das suas casas sem saber quantos sairiam na manhã seguinte. Aninhavam-se os mais pequenos entre o calor das ovelhas que eram, por aquelas paragens, os únicos animais que conseguiam resistir ao corte do frio. Especificamente aquelas, com a sua misteriosa lã, branca cor da neve, de dia, de um preto brilhante de céu estrelado, à noite. A quem possa perguntar, durante a alvorada e o lusco-fusco tinham a cor de amêndoa ralada e cheiravam consistentemente a ovelhas, que normais tinham que ser nalguma coisa. Se durante o resto do ano passavam a noite no estábulo da aldeia, quando fazia frio as gentes atafulhavam-nas dentro de casa, para darem calor. A Luna adorava-as, dizia que eram as mais bonitas do mundo, mesmo sem nunca ter saído da sua aldeia. Não precisava, tinham-na mantido viva ao longo de 6 invernos e gostava delas tanto como dos seus próprios pais. E foi por isso que, num determinado dia (à noite) de dezembro, enquanto o frio mordia ainda com os molares, Luna saiu de mansinho da sua pequena cabana, nos braços uma ovelha pequenina. Esta pequenina rebeldia, justifica-a o facto de, nesse ano, a sua família ter conseguido uma criação anormalmente grande de ovelhas da Lua (era assim que se chamavam, ninguém sabia muito bem porquê). Ora, estando a cabana demasiado cheia, acordou com o balido aflito de uma ovelha bebé que deu por si apertada contra um canto, sem conseguir respirar, perdoem-me a apoquentação.
Ao que interessa, ao sair e pôr os pés descalços nas ervas quebradiças da primeira geada, a Luna deixou de sentir nos braços o suave peso da pequenina ovelha, sentiu-a debater-se e depois flutuar, misturando a sua lã preta no preto frio da noite. Era tão bonito... e, do alto dos seus quase 7 anos, Luna pensou. Percebeu que as todas as superstições têm uma história, que por vezes esquece-se a história mas não a superstição, como a que têm os aldeões de levar todas as noites as ovelhas no estábulo antes de anoitecer. E achou que tudo era ligado, se ao menos houvesse uma criança com paciência de adulto ou um adulto com espírito de criança; poderemos imaginar nós agora como seria previsível que a neve atraísse a neve e a noite brilhante de estrelas o brilhante negro da lã de uma ovelha da Lua, ou mesmo como trabalhou a providência ao colocar nas mãos de uma menina pequena chamada Luna uma pequena ovelha da Lua, ou mesmo o que provocariam as duas ainda hoje. Mas o seu a seu tempo, se no tempo esquecido de que falamos não se sabia do de hoje, também não se saberá a meio de uma história o seu fim.
Admirava então a pequena a magia da ovelhinha e tudo se colocou no lugar ideal. O frio, a ovelha, a Lua, a noite, tudo se conspirou para que um espírito de criança colasse tudo com uma pitada de magia.
O sol brilha muito e por isso é muito quente, mas a Lua também brilha. Até aposto que é suficientemente quente para que, se trouxéssemos cá para baixo um bocadinho, iluminar e aquecer toda a aldeia. Podíamos ir lá buscá-la de noite, quando as ovelhas conseguem flutuar pelo ar. Levávamos carroças e trazíamos uns bocadinhos cá para baixo.
Falou assim na manhã seguinte às gentes da aldeia e ninguém duvidou dela, que a magia das crianças é uma coisa muito séria e, fosse como fosse, o frio convencia a tentar. Em três dias, construíram-se três carroças feitas integralmente de ébano, podia ser que ajudasse as ovelhas, a noite atrai a noite. E na do quarto dia, designaram-se três carroceiros, três homens com picaretas e três mulheres com três sacos e três sandes cada uma, amarraram-se a cada carroça três grandes ovelhas da Lua, e o mundo viu por momentos três carroças pretas com três sacos pendurados e puxadas por três ovelhas pretas cada uma contrastar-se contra o brilho da Lua, enquanto que os carroceiros riam em Oh! Oh! Oh!’s de contentamento. Se a este conto acrescentou alguém um ponto, não será da nossa conta, quem tiver ponta de certeza jure que o pai natal não existe e quem tiver olho vivo conte o que de extraordinário por lá aconteceu, que a Lua fica longe e de cá de baixo não se distingue senão a sua redondez. O certo é que, de manhã, chegaram cá abaixo três vezes três sacos de Lua e quem lá os tinha ido buscar. Vinham ainda quentes, brilhantes não, mas toda a gente sabe que a Lua brilha é de noite. E é facto que, chegada a noite, juntaram-se num monte a meio da aldeia os pedaços de Lua e estes iluminaram e aqueceram todo esse Inverno e os dois que o seguiram, perdendo depois a propriedade.
 Mais que isto, não se sabe. O que se sabe é que, de três em três anos, mais coisa, menos coisa, lá por altura do Natal, acontece um fenómeno chamado “El Niño” que provoca temperaturas mais altas e outras alterações no clima, mas isso é coisa de gente entendida. Mais uma vez, quem souber que jure mas, cá entre nós, eu acho que a Luna não se ia importar muito que a tenham confundido com um menino, não acham?

5 comentários:

  1. Cá está, caro Anónimo, numa suprema demonstração de como se faz um conto (cortesia do prezado confrade Miguel de Miguel), a resposta à sua intrigante e deveras inusitada questão : as rodas eram pretas...

    Como podeis observar, não deixamos nenhuma pergunta por responder, enquanto detivermos o engenho e a arte para procurar a resposta apropriada.

    Saudações Cervejeiras,
    João Gramaça, Presidente da Mesa e Grão Mestre d'A Confraria da Cerveja.

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  2. e digo mais:

    nenhuma pergunta por responder!
    x)

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  3. Os meus parabéns.

    Nunca pensei que surgisse um conto tão bem construído da pergunta das ovelhas :)

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  4. muitos muito obrigados, caro amigo, vivemos para servir. visitei o(s) teu(s) blog(s) e fiquei curioso. duvido ter percebido alguma coisa, mas hei-de explorar com tempo.

    e a outra pergunta será respondida, a seu tempo :)

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  5. Mesmo muito bonito!

    Magui

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