sábado, 20 de agosto de 2011

Vai ser numa noite assim, precisamente como esta.
Não a desejo nem a temo nem a agoiro, sequer, espero-a com uma concentração impenetrável e as duas mãos pousadas em cima da mesa, oito dedos numa tablete de gatilhos e mais dois para lançar de uma palavra em outra, será o espaço intervocabular como o pau das cerejas, raios o partam mais a sua irritante recorrência, e tudo isto o faço como o tísico que espera pacientemente a morte à porta só para lhe fazer a desfeita de se lhe adiantar com um tiro engolido de baixo para cima.
Ou como o amante, à porta esperante, feito destroço em três actos, o próprio, a faca e o alguidar, todos três unos na dor libertadora da retribuição, o primeiro para açoitar com o adjectivo quem com o verbo ainda o fere, desfere a segunda dilacerações no coração de quem lho esmagou, o derradeiro apara os jorros do sangue apodrecido de pecados carnais e derrama-lho rua abaixo e noite dentro, rumo só à ignomínia, salvo a boca de algum cão.
Tudo isto já viu vezes sem quanto e ainda a puta não chegou, nem chegou a noite, a minha puta daquela noite que vai ser, ponto por ponto, como é esta, e é ainda nesta que lhe ensaio os cheiros, as poses, as luzes e os sons todos, demasiados e sobre tudo encavalitados, passos da vizinhança, portas, autoclismos, ventos, cliques e claques da poiese retórica, ventoinhas que sopram, cadeiras que gemem, estômagos que grunhem e o furtivo mas veemente tic do relógio, que expulsou para a rua sem contemplações fraternas o mais pachorrento tac, por falta de espaço.
Di, tri, quadrissecam-se os pormenores desta noite em tudo igual à que há-de vir, massajam-se os punhos e estalam-se o dedos, que dependente do seu digital desempenho está um retrato, em tudo mais perfeito que este, duma noite homicida que me vai matar mais um pouco, outro pouco igual ao que morro agora mesmo.

Saudações cervejeiras
e participem com comentários ou sugestões naquele que também é o vosso espaço - ya, ya, bite me...

Miguel de Miguel, escrivão e grão-mestre d'A Confraria da Cerveja

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

a heresia é um posto

"Enganas-te."
Num sonho, foi o que me disse deus, só isto e mais nada, sem ai nem ui nem inteligentes ditos, nem mais que a leve ironia dos verbos quando se reflectem, todos em geral e este em particular, em particular me apontou o divino dígito e logo a seguir voltou costas e saiu peremptoriamente. Omnipotências à parte, entrou-me como uma agulha pela têmpora direita, saiu pela esquerda como uma dor fininha e o resultado da ideópsia, esse veio taxativo e com azedume e sem mais quês nem porquês, findo, exacto e inútil.
"Engano-me em quê?", não é?
Mas deus não fala de lógica, nem com lógica, nem com lógicos, aliás, criou o próprio conceito como criou o demónio, por descargo de consciência, e está claro que o homem, como ao demónio, agarrou-se à lógica como a um bote de salvação, apetrechou-a e pintou-a toda de cinzento metálico e outras cores sóbrias, deu-lhe o ar mais eficiente que conseguiu e, ao sétimo dia, admirou a sua obra e viu que ela era boa. A lógica e o bote, meus senhores e minhas senhoras, salvaram-nos do dilúvio, pensámos até que da ignorância, mas os botes não voam e vozes de burro não chegam ao céu, e deus tem o privilégio de lá morar.
Com tanto cá chegámos, depois de uma acusação e uma meia pergunta à boca pequena, aqui estamos à soleira da porta. Se o próximo passo leva à igreja ou ao asilo, decidirão as minhas senhoras e os meus senhores. Falou-me deus ou não, se falou existe, se não, sou louco, e é o que posso espremer desta mirabolice. Se eu fosse um homem honesto, adiantava que o conteúdo da mensagem transporta a evidência divina da divina inexistência. Mas longe de mim dizer para fora o que já em pensamento é pecaminoso.
Boa noite.

Saudações cervejeiras e um duradouro (dura e de ouro, livre-nos A Litrosa de cerveja mole e de outras cores) regresso!

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Abandono

Inspira devagar. Enche o peito. Expira e sente o ar exalado a levar com ele as dúvidas que te esganam num encarceramento constante em redor da frágil e alva garganta, pérolas baças dum colar velho demasiado apertado, velho como o mundo que construiste com pequenos pedaços, presos por frágeis fios. Está prestes a quebrar. Estás com medo. Contudo, não sabes se receias que ele se quebre ou que se mantenha imutável, uno, incorrompível.

O firmamento pinta-se suavemente com as mil matizes de azul, com tons que até hoje desconhecia existirem. Observo-as a enlevarem-se sensualmente entre si num dégradé único, numa perfeição vedada às mãos humanas e que me embala no esquecimento de não pensar em nada. Pensar no nada. Não pensar de todo. Pensar nos pequenos pormenores que não consigo juntar para formar a imagem que se obvia perante mim.

A lua timidamente ascende nos céus, roída até restar apenas uma linha curva, dum branco prateado que ofusca as estrelas invisíveis que a rodeiam. Escondem-se. Desviam-se para um segundo plano no qual se protegem de ser. É mais simples, mais fácil não ser, existir à vista de todos sem se deixar ver.

A noite apodera-se dos subúrbios. Nos dias esquecidos e arrastados dum Verão atípico, os subúrbios hibernam num coma profundo. Vazios de alma durante o ano, vazios de sangue durante um mês. As casas ocas têm os estores corridos, como pálpebras cerradas sobre olhos que somente têm utilidade para olhar para dentro e nunca para fora. O cúmulo do egocentrismo ou a devassa da privacidade, depende da perspectiva. Talvez sejam meras expressões sinónimas, promíscuas no significado mas distantes na forma. Um pouco como esta carne que agora falta nos subúrbios, que segue sempre o mesmo caminho, banal, melancólico, mórbido. Os mesmos passos todos os santos dias do profano ano. Os mesmos passos que o vizinho psicopata do 5º esquerdo ou que a adúltera que vive ao fundo da rua. Ir e vir, vir e ir, vir-se com sorte, ir-se no final.

Esta carne superfluamente diferente, cujo interior é invariavelmente igual. Que não foge deste destino de se sacrificar para ter um telhado sobre a cabeça e pão para levar à boca. Que abdicou de pensar para dar resposta às necessidades básicas do ser humano. Passe o constatável pleonasmo de não pensar e manter-se adjectivável como humano.

A noite esgota-se. Todos os traços e pontos de brancura são consumidos pelo preto cada vez mais carregado. As casas mortas encerram-se em celas de escuridão.

Uma chama só ergue-se no seio dum negro impoluto. Assim se faz luz, assim se marca um último suspiro de vida onde tal não era expectável. Esta é a paz suburbana, interrupção sazonal duma guerra travada sem esperança entre o espírito gasto de mil rostos anónimos e um fado a que se entregaram sem ler nas entrelinhas a verdade crua. A rejeição do que poderiam ser. A negação do sonho.

O sonho que ainda hoje guardo. Ilumino-o com as cinzas hedónicas do deleite, fogo que me orienta nas divagações do ócio. Penso no nada. Analgésico para o fardo de pensar. Não posso deixá-lo fugir, a ele, o pensamento. Sei para onde quer ir e por essa porta entreaberta adivinho uma ilusão de óptica que habilmente mascara um muro cinzento e frio.

Não penso... E eventualmente deixar-me-ei ir. Para onde, não sei. Não reside aí a beleza da abstracção?