segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ensaio sobre a vida

A noite beija o dia numa explosão de sensualidade, apenas possível graças ao véu molhado que cobre a indefinição em que ambos se abraçam. O mundo está parado, num momento raro de contemplação. Parado numa profunda inspiração antes dum inevitável mergulho, que se antevê desesperado e sem retorno.
Permitam-me a veleidade de pousar o olhar numa figura indistinta ao longe... Aproximemo-nos, pé ante pé, desta sombra prostrada pelo cansaço da realidade, num esforço retórico para se manter acordado. O céu veste-se num tom de cinzento carregado, inusitada escolha para um dia perdido nos meados de Agosto, altura curiosa, dado que nunca se percebe muito bem em que ritmo louco anda o tempo. Nunca se percebe muito bem se hoje é hoje ou se já é amanhã. Nunca se percebe muito bem qual o dia da semana em que estamos - mas também, para quê? Não somos escravos das datas, das horas, dos minutos, durante os longos meses de exílio, enclausurados, oprimidos pelas obrigações que nos extraem quaisquer réstias de inspiração, nos chupam até ao tutano com a raiva de nos submeter à sua vontade? Afinal o que somos para lá daquilo que fazemos? Ao fim ao cabo, só podemos conhecer alguém através das suas acções, no sentido lato da palavra - o que diz, o que faz, o que escreve... Só a partir daí podemos deduzir o que alguém pensa, o que sente, o que sufoca dentro de si...
Daí que dedique a minha atenção a este ser, isolado na varanda do seu desassossego, algures numa outra dimensão ou então apenas num recanto qualquer do nosso pequeno vasto mundo. Num óbvio sinal de delírio, ou simplesmente de egocentrismo, vou arrogantemente mascarar-me de omnisciente e tentar desvendar o que ele (pois é dum ele que se trata) resguarda dentro de si do vento frio e cortante que agora se levanta e do sono que se apodera dele, paulatinamente, obedecendo ao compasso das gotas de água que, numa cadência repetitiva, o embalam num entorpecimento assaz estranho e agradável.
Ele é um vulto dum passado recente, ele é alguém que se perde nos pensamentos que o afundam num pânico sem precedentes. Ele é um pobre desgarrado, ele é alguém que se deixa confundir pelos labirínticos pântanos onde é obrigado a tentar encontrar um caminho, um trilho para a promessa que se esconde na bruma que domina o seu horizonte. O que é ele? O que está aqui a fazer? Nem ele sabe. Duvido que alguém saiba.
Olho pelos olhos dele, partilho a sua visão deturpada pelo progressivo cerrar das pálpebras. Vejo as gotas de água num equilíbrio de ballet sobre as folhas dum limoeiro, retorcido pelas intempéries, desfigurado pelos nós da madeira velha e ainda assim resistente. Vejo um regato a precipitar-se, numa pressa eterna, por entre os seixos que os anos tornaram lisos e polidos, obras de joalharia engendradas pelo líquido cristalino que com ele traz um rumor da pureza das nascentes que brotam dum seio de granito. Vejo montes imponentes, sob um capuz de anciãs árvores numa paz inquebrável, enquanto farrapos de névoa tacteante se retiram para o refúgio da atmosfera. Vejo o balir das ovelhas que pastam, inocentes e desdenhosas do universo de carros, máquinas, fumo - só os tufos de erva viçosa e tenra lhes interessam, descobertos por entre as colunas de pedra que sustentam vinhas plantadas pelos avós dos avós dos donos, colunas que se erguem como memoriais da simbiose entre a Natureza e o Homem. Vejo uma rara alegria, uma alegria que aquece uma alma enregelada pelos cuidados, pelas preocupações, pelo cansaço de não viver, uma alegria que não via há muito tempo, há demasiado tempo. Vejo a cristalina e quase infantil alegria de sarar a fadiga com duas inspirações profundas dum ar com um indelével sabor a pinheiros e eucaliptos, de lavar os olhos com um instante de uma natural sublimação, de uma verdura extasiante, de um orgasmo contemplativo.
Vejo o sorriso que nasce nos teus olhos. Vejo a esperança, no coração dele, de poder ver, um dia, esse sorriso ser enriquecido pelo doce curvar dos teus lábios. Vejo o anelo que sente, mitigado num refúgio que sabe que terá de terminar - não há curas definitivas, apenas um adiar do inadiável.


"What is this life if, full of care,
We have no time to stand and stare?"


Uma vida assim não é nada, é um vazio, um vácuo que nos engole e nos expurga de todo o desejo de felicidade. Esta é a minha resposta. Peço perdão pelo atrevimento de ir mais além do que foi William Henry Davies (para os que não conhecem, um Alberto Caeiro galês, e o autor desta questão num dos seus poemas, relembrada por um dos nossos leitores), que considerava que a vida seria pobre se não tivéssemos o tempo para olhar para o mundo em nosso redor, para as maravilhas que temos a sorte de poder apreciar. Contudo, qual o sentido de viver uma vida pobre, se apenas temos direito a uma? Uma vida pobre é um eufemismo, é o mesmo que não ter nenhuma...

2 comentários:

  1. "Uma vida pobre é um eufemismo, é o mesmo que não ter nenhuma..."
    Muito bom gramaça!!!
    Continuem com esta ideia, que o blog está bem interessante!
    Abraço,
    Leo

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  2. esse poema, Leisure, é um dos meus favoritos.
    e belo texto que daí foi extraído!

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