terça-feira, 6 de setembro de 2011

Aleatoriedade

Condoído. Sente uma mescla acre de mentol e tabaco na língua, na boca, na alma. Frágil e levemente entorpecido pela bruma que se ergue para saudar uma nova manhã, que de novo tem pouco pois com ela traz os anciães vícios de outras alvoradas doentes e podres, corrompidas pelos fantasmas oriundos das sombras. Sombras negras e impenetráveis. Sombras que o escondem. Sombras que o engolem. Sombras desassombradas pelo som dos pardais dum castanho disforme e pálido que se lançam num voo picado para o rebuliço do quotidiano bruto e cru, constrangido pelas necessidades animalescas da alimentação e reprodução. Sexo e pão. Sangue e morte. Eis o que é a vida, já o haviam discernido em orgias selváticas os romanos.

Contudo, ele sente-se tão-só dorido. Uma dor física que transcende o espírito pobre e abúlico. Chama ténue acesa num fugaz momento azulado. Chama extinta, efémera como a existência. Mesmo que essa existência se destrince, na sua significância, da vida. Que vida, ai, que vida. Mera sucessão de dias, meses, anos com prazo de validade. Sequência perene de estações que passam por nós com a indiferença a que votamos o que não nos interessa - ou seja, quase tudo. Raça egocêntrica. Não isolada, não, jamais sozinha. Muitas vezes só, mas nunca sozinha.

Ele está só. Só porque sim, ou quiçá por alguma razão que venha sublimar o que de errado tem tudo aquilo onde repousamos o olhar com um ensejo entusiasta de quem vai mudar o mundo a partir do quarto, a partir até - ah, horror prepotente, cúmulo do comodismo - da cama. Razão que ilude habilmente a própria racionalidade de querer estar só.

Ressoa pelo mundo um suspiro, profundo e condoído. Ele está só e sozinho. Morre. Perece. Fenece. Cai com as folhas nas quais o verde viçoso da memória dum Verão alegre e cantarolante cede gradual porém inexoravelmente lugar ao tom acastanhado da tristeza sazonal que deprime de tal forma os dias que os obriga a esconderem-se prematuramente da luz, demasiado reveladora das imperfeições salientes nas rugas que se formam quando o sorriso morre. Quando ele se solta, dá largas à sua melodia, toda a ruga tem uma desculpa para existir. Caso contrário, quando os sorrisos são substituídos pela normalidade sisuda, assumem-se de imediato como sinais da provação a que todos nós nos vergamos. A provação do ser.

Ele está sozinho e só. Brotam da noite lágrimas brancas que ponteiam os caminhos virgens do céu. Brotam dele lágrimas transparentes, insípidas como ele próprio, como o seu sofrimento oco e fútil. Jorra-lhe do peito um vómito de paixão, num reflexo poderoso e extasiante que o deixa prostrado no chão, sem vontade de se revoltar contra a mágoa que o preenche de modo tão completo que não permite a compreensão da infantilidade do pranto. De joelhos, numa varanda delimitada por metal retorcido e enferrujado, com lascas de tinta de cor indefinida. Deitado, embalado pelo rumorejar do ribeiro a seus pés, que corre, corre, corre até se escoar para uma amálgama incógnita e negra no ocaso para lá do horizonte.

É o carpir que o acorda. O carpir da noite onde adormece e acorda, ele que não conhece outro sol que não o da noite cerrada. Tudo é noite. Tudo é morte. Somente o luar lhe permite sobreviver às sombras. Somente aquele fio de ouro alvo lhe permite ver as folhas que se acumularam em sua volta, lápide botânica sobre túmulo de calcário. Numa delas desenha com os dedos esguios e feridos pelas farpas de mil ramos ásperos as letras dum nome indistinguível. Contempla a obra imaginária com um olhar sonhador, distante, orgásmico. Regozija-se no que pensa que é mas não é, no que alucina que seria mas que nunca será, sem deixar de ser o que hipoteticamente seria sem sê-lo. Delira na febre apirética de amar a obra que mais ninguém poderá apreciar. Nem por isso a preza menos, pois é dele, só dele. Ele está só. Ele está sozinho. Ele está com ela sem estar. Ele está com ela apenas para apaziguar o seu desejo egoísta de sentir prazer, de sentir a felicidade, de julgar ser imortal, sobrevivendo a toda a morte que o envolve graças à paixão solitária que acaricia, que cuida carinhosamente sem se importar se ela é real ou não.

Ele está, mas por quanto tempo? Não falta muito para que se transfigure nas sombras que o guardam, para que nele se imiscua o negrume do nada. Ela está longe, tão perto e simultaneamente longe. Se ele deixar de olhar para baixo, talvez a veja, a ela, a real. A carne que lhe transporta o espírito, e não a reconstituição idealizada duma figura imaterial. Quem sabe, se ele acordar da noite deixará de estar só, de se arrastar na escuridão como o verme a que se reduziu ao roer por dentro o próprio intelecto.

A morte vem. A solidão aperta. A letargia de quem recusou a luz clara é paralisante. Mas não irremediável.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Bebe connosco, amigo ou confrade.