quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Abandono

Inspira devagar. Enche o peito. Expira e sente o ar exalado a levar com ele as dúvidas que te esganam num encarceramento constante em redor da frágil e alva garganta, pérolas baças dum colar velho demasiado apertado, velho como o mundo que construiste com pequenos pedaços, presos por frágeis fios. Está prestes a quebrar. Estás com medo. Contudo, não sabes se receias que ele se quebre ou que se mantenha imutável, uno, incorrompível.

O firmamento pinta-se suavemente com as mil matizes de azul, com tons que até hoje desconhecia existirem. Observo-as a enlevarem-se sensualmente entre si num dégradé único, numa perfeição vedada às mãos humanas e que me embala no esquecimento de não pensar em nada. Pensar no nada. Não pensar de todo. Pensar nos pequenos pormenores que não consigo juntar para formar a imagem que se obvia perante mim.

A lua timidamente ascende nos céus, roída até restar apenas uma linha curva, dum branco prateado que ofusca as estrelas invisíveis que a rodeiam. Escondem-se. Desviam-se para um segundo plano no qual se protegem de ser. É mais simples, mais fácil não ser, existir à vista de todos sem se deixar ver.

A noite apodera-se dos subúrbios. Nos dias esquecidos e arrastados dum Verão atípico, os subúrbios hibernam num coma profundo. Vazios de alma durante o ano, vazios de sangue durante um mês. As casas ocas têm os estores corridos, como pálpebras cerradas sobre olhos que somente têm utilidade para olhar para dentro e nunca para fora. O cúmulo do egocentrismo ou a devassa da privacidade, depende da perspectiva. Talvez sejam meras expressões sinónimas, promíscuas no significado mas distantes na forma. Um pouco como esta carne que agora falta nos subúrbios, que segue sempre o mesmo caminho, banal, melancólico, mórbido. Os mesmos passos todos os santos dias do profano ano. Os mesmos passos que o vizinho psicopata do 5º esquerdo ou que a adúltera que vive ao fundo da rua. Ir e vir, vir e ir, vir-se com sorte, ir-se no final.

Esta carne superfluamente diferente, cujo interior é invariavelmente igual. Que não foge deste destino de se sacrificar para ter um telhado sobre a cabeça e pão para levar à boca. Que abdicou de pensar para dar resposta às necessidades básicas do ser humano. Passe o constatável pleonasmo de não pensar e manter-se adjectivável como humano.

A noite esgota-se. Todos os traços e pontos de brancura são consumidos pelo preto cada vez mais carregado. As casas mortas encerram-se em celas de escuridão.

Uma chama só ergue-se no seio dum negro impoluto. Assim se faz luz, assim se marca um último suspiro de vida onde tal não era expectável. Esta é a paz suburbana, interrupção sazonal duma guerra travada sem esperança entre o espírito gasto de mil rostos anónimos e um fado a que se entregaram sem ler nas entrelinhas a verdade crua. A rejeição do que poderiam ser. A negação do sonho.

O sonho que ainda hoje guardo. Ilumino-o com as cinzas hedónicas do deleite, fogo que me orienta nas divagações do ócio. Penso no nada. Analgésico para o fardo de pensar. Não posso deixá-lo fugir, a ele, o pensamento. Sei para onde quer ir e por essa porta entreaberta adivinho uma ilusão de óptica que habilmente mascara um muro cinzento e frio.

Não penso... E eventualmente deixar-me-ei ir. Para onde, não sei. Não reside aí a beleza da abstracção?

1 comentário:

  1. Portentoso regresso, confrade.
    Bebamos deste nada, depois das lágrimas e dos risos e depois da suprema Litrosa, possam os nossos espíritos resplandecer e as nossas línguas e dedos trocar eloquências e mergulhar no próprio âmago das mais densas florestas. (ok, se calhar ficou um bocado porno)

    um toque de arcade?
    sudações cervejeiras! (sim, está bem escrito e um calor que não se pode)

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